Telhado de Vidro, November 2015

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Elvis Costello e suas memórias: Não tentem ler sua mente.


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   Marco Antonio Barbosa

Referindo-se aos anos iniciais de seu estrelato, Elvis Costello costumava afirmar: “Eu estava estragando minha vida de propósito, para poder escrever canções estúpidas a respeito”. Não chega a ser uma verdade definitiva. Ele escreveu, sim, letras que, de modo mais ou menos oblíquo, tratavam de experiências pessoais. Mas nunca vestiu a carapuça do “compositor confessional”; às vezes, os títulos das canções revelavam mais do que os versos. Uma exceção é “London’s Brilliant Parade”, de 1994, sua letra mais diretamente autobiográfica. Narrando as memórias da infância passada na Londres dos anos 1950/1960, EC cantava:

“She’s one of those girls that you just can’t place
You feel guilty desiring such an innocent face
But of course they knew that when they cast her
Along with the red Routemaster”

O “Routemaster vermelho” — o famoso ônibus de dois andares de Londres — faz uma aparição crucial no capítulo 2 de Unfaithful Music & Disappearing Ink, o calhamaço (688 páginas) de memórias que Costello publicou (lá fora) no começo de outubro último. “Uma tarde, eu observei-a descendo de um ônibus Routemaster após uma chuva de verão. Numa poça de água da chuva, havia um arco-íris, feito de óleo ou de gasolina, que espirrou sobre seus sapatos marrons quando ela aterrissou. Levou quatro anos até que eu reunisse coragem para atirar meu casaco para que ela pisasse, e convida-la para sair (tradução minha, como em todos os trechos em itálico).” “Ela”, no caso, era Mary Burgoyne, primeira esposa de Costello (na época, ainda Declan MacManus) e mãe de seu filho mais velho. O casamento foi arruinado pela infidelidade serial do cantor durante a primeira fase de sua carreira. Criado em uma família católica de ascendência irlandesa, o cantor casou-se aos 20 anos com a namoradinha de adolescência. O matrimônio falido se arrastou até meados da década de 1980, e EC fez a crônica de sua dissolução nas letras dos álbuns Goodbye Cruel World (1985) e King of America (1986). “Canções que eram como aspirina para a dor e arnica para os ferimentos. Ainda levaria quase dez anos até que eu terminasse de escrever sobre a tristeza que provoquei e sobre a escuridão que poderia engolir duas pessoas que, certa vez, estiveram tão brilhantemente apaixonadas uma pela outra.”

Tão obliquamente revelador quanto as canções de antanho, Unfaithful Music & Disappearing Ink não é uma autobiografia convencional. Hábil com as palavras desde sempre, Costello dispensa a ordem cronológica e segue guiado pela memória afetiva, alternando causos pitorescos, encontros fortuitos com ídolos travados no decorrer dos anos e lembranças de infância — retornando, aqui e ali, à narrativa principal sobre sua carreira, iniciada em 1969. Mas não há muitas revelações bombásticas, indiscrições ou decodificação de letras enigmáticas. Quem espera saber, por exemplo, a identidade da Alison da famosa balada vai se decepcionar. Também não conte com muita precisão em citação de datas, nomes ou locações. O título já desengana os curiosos, ao citar um verso de “All the Rage”, de 1994 (“Don’t try to touch my heart / It’s darker than you think” / “And don’t try to read my mind” / “Because it’s full of disappearing ink”).

Mesmo com o alerta do título, dá, sim, pra ler (um pouco) da mente de EC no livro. A influência da família sobre sua trajetória artística; a “revelação” que sentiu ao descobrir os Beatles, aos nove anos; os mea-culpa em relação aos vários maus passos dados especialmente na juventude; os problemas pessoais causados por seu ego; a relação de amor & ódio com o American way of life; tudo isso é discutido em detalhes. Ainda há detalhes do processo de criação de diversos de seus clássicos (ainda que a maioria das histórias já tivesse sido contada nas liner notes de seus CDs). E, acima de tudo, a voraz paixão do artista pela música, não apenas a música pop de sua época, mas todo o tipo de música. Seu conhecimento enciclopédico o permite discorrer, com a mesma empolgação, sobre George Gershwin, Richard Hell, lados-B de obscuros singles de reggae dos anos 60 ou esquecidos sucessos da música country. Fica claro que, mais do que qualquer trucagem gratuita, é essa paixão que o impele a assumir tantos estilos e gêneros díspares, e a colaborar com artistas de jazz, folk, hip hop, rhythm’n’blues, country e da música erudita. “Não há superior. Não há ‘alto’ e ‘baixo’. O bonito é que você não tem que escolher. Você pode amar tudo. Essas canções estão lá para te ajudar quando você mais precisar de ajuda.”

Costello dá ênfase à história de sua família, detalhando a carreira do pai, Ross MacManus, que começou como músico de jazz e prosseguiu como cantor até os anos 1980. Na aba do pai, o pequeno Declan Patrick Aloysius aprendeu a se acostumar com o showbusiness desde cedo. Como vocalista da big band de Joe Loss, uma das mais tradicionais da Inglaterra, Ross era abastecido regularmente com singles que estavam na parada de sucesso; ele aprendia a cantar os hits e descartava os compactos em seguida. Até que, em 1963, surgiu “Please Please Me”, e seu filho único ficou fascinado com a canção. Ross participou da Royal Command Performance de 1963, aquele show de variedades no qual John Lennon soltou a famosa frase sobre “sacudir as joias”. Declan assistiu ao show em casa, e na manhã seguinte, meio ressacado, o pai lhe estendeu uma folha de papel com os autógrafos dos Fab Four. “Parecia que a tinta acabara de secar (…) Cuidadosamente, mas nem tanto, eu recortei as assinaturas, picotando fora o “e” de “The”, e colei os quatro pedaços irregulares de papel em meu álbum. Pode-se dizer que fui eu quem separou os Beatles, e só precisei de uma tesoura.” Adulto, Costello se tornaria amigo e parceiro de Paul MacCartney, e conta no livro diversos encontros que teve com o beatle nas décadas seguintes. “Quando recebi a ligação informando que Paul queria que eu compusesse algumas músicas com ele para seu próximo disco, eu não sabia o que esperar da experiência. Mas como o último hit co-escrito de Paul tinha sido com Michael Jackson, fiquei imaginando se eu deveria tomar algumas aulas de dança.”

Aliás, as recordações de encontros com celebridades ocupam boa parte do livro, narradas de forma saborosa. Costello assume o papel de fã e ocasionalmente desculpa-se por eventuais impertinências, mas não perde a piada. Há histórias sobre Dylan (que perguntou a Costello: “Então, aquele programa ‘Watching the Detectives’ existe mesmo?”), Bowie (“Afinal, David se inclinou em minha direção, como se quisesse armar uma conspiração, e disse, em sua melhor voz de David Bowie: ‘Você se lembra? 1978? Nós éramos as únicas pessoas almoçando num restaurante indiano com vista para o Central Park (…) Nós dois estávamos ocupados com jovens senhoras.’), Johnny Cash (“Ele ofereceu uma mão que engoliu a minha e disse aquelas palavras familiares, ditas em incontáveis aparições na televisão: ‘Olá, eu sou Johnny Cash’. Ele era extraordinariamente parecido com Johnny Cash.”) e Van Morrison (“Eu gostava de sair para correr de manhã cedo, e frequentemente esbarrava com nosso vizinho Van Morrison. Quando digo ‘esbarrava’, estou sendo bem literal. Van gostava de caminhar bem longe do meio-fio, abraçando as paredes das casas, e o portão do jardim de nosso prédio dava direto para a rua. Não havia como não colidirmos. Trombamos um no outro. De novo.”). Anedotas sobre (e com) Jerry Lee Lewis, Solomon Burke, Robert Plant, Aretha Franklin, Jeff Buckley, George Jones, Bruce Springsteen, Joni Mitchell, Pete Townshend, Joe Strummer e uma cacetada de outros nomes estão salpicadas pelos capítulos. O desejo de trocar figurinhas com seus pares esteve por trás da concepção de seu talk-show, Spectacle, que durou duas temporadas e cujos bastidores merecem um capítulo no livro.

Outros encontros são contados de forma mais reverente. Em 1983, ele convidou Chet Baker para tocar em sua gravação de “Shipbuilding”. A lenda do jazz vivia na semiobscuridade, demolido pelo vício em heroína. “Chet então me perguntou aquelas coisas que os junkies perguntam para pessoas que acabaram de conhecer. Disse a ele que não tinha qualquer conhecimento a respeito e depois nunca mais tocamos no assunto.” Um capítulo repassa a relação entre Costello, Allan Toussaint e a cidade de Nova Orleans, com direito à participação de Yoko Ono — Toussaint produziu a versão de “Walking on Thin Ice”, de Yoko, gravada por Elvis e os Attractions em 1983. “Entramos em seu Rolls-Royce dourado — aquele com a palavra PIANO na placa. (…) Ajudei Allen a carregar os mantimentos para a mala do Roller (…) Aquilo era Nova Orleans. Nós não estávamos apenas fazendo um disco. Tínhamos sido convidados para jantar.” Vinte e três anos depois, Costello e Toussaint fariam um disco inteiro juntos, The River in Reverse. Igualmente detalhados são os capítulos dedicados às parcerias com MacCartney e Burt Bacharach, recontando causos do trabalho de composição e gravação em discos como Flowers in the Dirt, de Macca, ou Painted From Memory, o disco em dupla com Bacharach.

O início de carreira no circuito folk, a formação do grupo Rusty (que se transformaria em um duo), a fase à frente da banda Flip City, o nascimento dos Attractions e a ascensão ao topo das paradas britânicas, o sucesso inicial nos Estados Unidos e a desintegração do grupo, em 1986, são tratados de forma impressionista. O que importa mais a Costello não são os fatos, e sim como eles o impactaram. Claro que, quando a história é boa, ele capricha mais na descrição. Como na vez em que a Stiff Records, sua primeira gravadora, organizou um “protesto” diante do hotel que sediava uma convenção de executivos da CBS em Londres. O objetivo era chamar a atenção sobre My Aim Is True. “(…) os executivos da Columbia e seus lacaios começaram a sair para o almoço (…) e os manifestantes começaram a berrar e eu comecei a cantar, para o grande desgosto do porteiro uniformizado. (…) Uma van da polícia descarregou um bom número de oficiais na rua. Meus destemidos compatriotas atiraram seus cartazes longe e correram para todas as direções (…) Eu continuei cantando. (…) ‘Mexa-se, filho’, disse o policial. ‘Você está obstruindo a passagem.’ Eu dei um passo para a esquerda e continuei cantando. Ele deu um passo à direita, posicionando-se entre mim e meu público. (…) Eu tentei não cuspir nele enquanto cantava, o que poderia ser interpretado como um crime mais sério: ‘agredir um oficial de polícia.’” Costello passou algumas horas na cadeia na sequência, mas atingiu seu objetivo: a CBS lançaria My Aim Is True nos EUA em algumas semanas.

Quando o livro se aproxima dos capítulos finais, EC parece, afinal, ter encontrado alguma paz. O fim do segundo casamento, com Cait O’Riordan (alcoólatra e instável) é narrado de forma reticente. Mas fica claro que os últimos anos foram bem ruins. A amizade com Diana Krall, que se transformou em casamento, foi fundamental para que o cantor enfrentasse o dramático fim da vida do pai, debilitado e senil por conta do mal de Parkinson. Reencontra o prazer de tocar com os velhos comparsas Steve Nieve e Pete Thomas em várias ocasiões, até montar o The Imposters, os sucessores não-oficiais dos Attractions. (EC nota que, enquanto finalizava o livro, os Imposters já o acompanham há mais tempo do que os Attractions.) Ao falar da morte do pai, ocorrida em 2011, ele admite: “Alguns anos atrás, eu disse às pessoas que não lançaria mais álbuns. O argumento que apresentei foi o de que gravar discos, ainda que seja uma atividade prazerosa, se tornou uma vaidade (…) A razão real é que eu precisava de tempo para imaginar como eu conseguiria escrever canções, sem poder toca-las para meu pai.” Desde então, ele lançou Wise Up Ghost (2013), uma colaboração com a banda The Roots, que o jogou em um dos poucos universos que ainda não havia explorado: o hip hop, com sua lógica de loops, samples e citações. É mais uma adaptação, a adoção de um novo gênero, movida por sua inesgotável curiosidade. A explicação reside em um curto parágrafo do capítulo 26: “Mas também, se você pretende ter uma carreira longa no showbusiness, é necessário desviar as pessoas de si mesmo de tempos em tempos, para que elas possam se lembrar de por que sentem a sua falta.”


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Telhado de Vidro, November 2015


Marco Antonio Barbosa reviews Unfaithful Music & Disappearing Ink.

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